Tio Barnabé, um
personagem de Monteiro Lobato descreve o
Saci-Pererê:
O saci é um diabinho de uma perna só que anda
solto pelo mundo, armando reinações de toda
sorte: azeda o leite, quebra pontas das agulhas,
esconde as tesourinhas de unha, embaraça os
novelos de linha, faz o dedal das costureiras
cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o
feijão que está no fogo, gora os ovos das
ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de
ponta pra riba para que espete o pé do primeiro
que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é
sempre arte do saci. Não contente com isso,
também atormenta os cachorros, atropela as
galinhas e persegue os cavalos no pasto,
chupando o sangue deles. O saci não faz maldade
grande, mas não há maldade pequenina que não
faça.
Tio Barnabé continua:
- Tinha anoitecido e eu estava
sozinho em casa, rezando as minhas
rezas. Rezei, e depois me deu
vontade de comer pipoca. Fui ali no
fumeiro e escolhi uma espiga de
milho bem seca. Debulhei o milho
numa caçarola, pus a caçarola no
fogo e vim para este canto picar
fumo pro pito. Nisto ouvi no
terreiro um barulhinho que não me
engana. "Vai ver que é saci!" -
pensei comigo. - E era mesmo. Dali a
pouco um saci preto que nem carvão,
de carapuça vermelha e pitinho na
boca, apareceu na janela. Eu
imediatamente me encolhi no meu
canto e fingi que estava dormindo.
Ele espiou de um lado e de outro e
por fim pulou para dentro. Veio
vindo, chegou pertinho de mim,
escutou os meus roncos e
convenceu-se de que eu estava mesmo
dormindo. Então começou a reinar na
casa. Remexeu tudo, que nem mulher
velha, sempre farejando o ar com o
seu narizinho muito aceso. Nisto o
milho começou a chiar na caçarola e
ele dirigiu-se para o fogão. Ficou
de cócoras no cabo da caçarola,
fazendo micagens. Estava "rezando" o
milho, como se diz. E adeus pipoca!
Cada grão que o saci reza não
rebenta mais, vira piruá.
Dali saiu para bulir numa ninhada de ovos que a
minha carijó calçuda estava chocando num balaio
velho, naquele canto. A pobre galinha quase que
morreu de susto. Fez cró, cró, cró... e voou do
ninho feito uma louca, mais arrepiada que um
ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos
e todos goraram.
Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de
barro. Achou o pito naquela mesa, pôs uma
brasinha dentro e paque, paque, paque... tirou
justamente sete fumaçadas. O saci gosta multo do
número sete.
Eu disse cá camigo: "Deixe estar,
coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa
para você. Você há de voltar outro dia e eu te
curo."
E assim aconteceu. Depois de muito virar e
mexer, o sacizinho foi-se embora e eu fiquei
armando o meu plano para assim que ele voltasse.
Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez
às mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meus
roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em
tudo, como da primeira vez, e depois foi atrás
do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar.
Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma
brasinha, que trouxe dançando nas mãos.
Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma;
quando carrega brasa, vem brincando com ela,
fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo
furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e
sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo
o seu sossego.
Quando quer cruza as pernas como se tivesse
duas! São coisas que só ele entende e ninguém
pode explicar. Cruzou as pernas e começou a
tirar baforadas, uma atrás da outra, muito
satisfeito da vida. Mas de repente, puf! aquele
estouro e aquela fumaceira!... O saci deu
tamanho pinote que foi parar lá longe, e saiu
ventando pela janela fora.
Eu tinha socado pólvora no fundo do pito –
exclamou tio Barnabé, dando uma risada gostosa.
– A pólvora explodiu justamente quando ele
estava dando a fumaçada número sete, e o saci,
com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca
mais voltar.
Texto: O Saci / Monteiro Lobato. - São Paulo:
Editora Brasiliense S.A.
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