As carências da vida adulta se devem a razões bem mais
complexas que a falta de amor dos pais.
Não é minha intenção subestimar a importância das
vivências infantis dolorosas na formação de sintomas
chamados de neuróticos na vida adulta. Não gostaria,
porém, de continuar a superestimá-los, como têm feito
algumas das mais importantes correntes da psicologia contemporânea. A importância da infância na formação de
nossas estruturas psíquicas é óbvia. Além de ser
dependente, de ter o cérebro pronto para operar e
receber informações do meio que a cerca, a criança
possui uma intuição sofisticada, fruto da evolução
incompleta da sua razão lógica - a razão, após
estabelecer-se completamente, funciona como
"camisa-de-força" para as operações psíquicas
sensoriais.
O que me preocupa é a forma dedutiva de como muitos
raciocinam sobre o tema. Observam, por exemplo, um
adulto incapaz de ficar só e que busca com urgência
qualquer tipo de vínculo afetivo. Ficam sabendo que ele
teve uma mãe que lhe deu pouco carinho, pois vinha de
uma família em que não era usual a manifestação física
do afeto. Correlacionam os dois fatos e deduzem que,
"lógico", esse adulto carente de afeto é produto de uma
criança que teve menos amor que precisava.
Pode ser que seja "lógico", mas nem tudo que é lógico é
verdadeiro. O que define a veracidade de uma afirmação é
sua comprovação prática. Minha experiência clínica
mostra que todos nós, adultos, somos carentes, inseguros
e com grande dificuldade para estarmos sós, mesmo quando
tivemos uma mãe amorosa.
Alguns de nós crescemos carentes porque tivemos pouco
amor na infância e ansiamos por preencher essa lacuna.
Outros porque tivemos muito, acostumamo-nos a isso e não
conseguimos viver com menos. As carências da vida adulta
não dependem apenas de nossa mãe e das peculiaridades
que marcaram a nossa infância. Atribuo essa sensação de
incompletude a um acontecimento geral, próprio de toda a
espécie humana: a dramática vivência do nascimento,
quando nos desgrudamos da mãe e passamos a sentir toda a
sorte de inseguranças, desconfortos e desamparo.
O nascer é um "trauma" infantil, que nos marca a todos.
Com o passar dos anos, um outro ingrediente entra em
cena: o modo como funciona nossa razão. Já pelos 2-3
anos de idade observamos grandes diferenças na reação de
crianças expostas ao mesmo fato externo. Diante da morte
de um animal de estimação, por exemplo, algumas sofrerão
mais que outras. Algumas tolerarão melhor frustrações,
contrariedades e dores de todo o tipo; outras reagirão
com violência sempre que contrariadas. Algumas serão
facilmente conduzidas pelos argumentos; outras serão
guiadas mais pela vontade que pela razão. Não há como
negar que algumas dessas diferenças dependem de
variáveis inatas e não relacionadas com o ambiente ou às
vivências que cada criatura tenha tido de enfrentar.
Não desprezo a possibilidade de certas experiências
dolorosas terem forte influência sobre a formação da
personalidade de algumas pessoas. Isso, em virtude de
terem sido expostas a dores muito graves (estupro, pai
que se matou, queimaduras sérias etc.) ou por terem um
espírito muito delicado (filhos que se tornam tímidos ou
gagos em razão da agressividade dos pais, rapazes que
evoluem na direção homossexual por serem objeto de
humilhação, pessoas que se tornam obsessivas porque não
tiveram espaço para a expressão de suas raivas).
O que não me parece correto é generalizarmos esse tipo
de reflexão apenas porque nos parece "lógico". E, o que
é mais grave, para explicar condições gerais dos setores
humanos: inseguranças, carências afetivas e tantos
outros conflitos que todos temos. Esse raciocínio
equivocado sobre os "traumas" de infância tem acovardado
muitos pais, tornando-os incapazes de agir com rigor e
determinação na educação dos filhos.
Flávio Gikovate é médico psicoterapeuta,
pioneiro da terapia sexual no Brasil.
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